O Cinema é igual o rap

Amanhece mais um dia na periferia. Como toda manhã, Juca caminha sonolento pelas ruas da Baixada Fluminense. A imensa fila do trem quase não o incomoda mais. A rotina de estar um dia após o outro dia ali, transforma esse esperar numa coisa tão mecânica que Juca já nem percebe. Poucos imaginam o porquê de ele sempre pegar o trem no sentido oposto ao do centro. É que prefere acordar mais cedo e voltar duas estações até o ponto final, só para ter o privilégio de viajar sentado. Empurrões, dores nas pernas e sarradas não são problemas pra Juca. Nem mesmo o perigo de cair nos trilhos por conta da porta estar aberta.

Marcelinho, o dono da barraca onde Juca trabalha no camelódromo do centro, vira-e-mexe chama sua atenção, por ele não fazer a propaganda, gritando, como os outros camelôs fazem. É que Juca é tímido e prefere usar o intervalo entre um cliente e outro pra escrever seus raps. Sabe muito bem que não leva jeito para o ofício das vendas e desde que descobriu seu dom para a arte, vê no rap uma chance de ganhar dinheiro fazendo o que gosta.

Após muitas tentativas frustradas de descobrir o caminho do sucesso, Juca decide que um videoclipe seria um ótimo impulso, afinal, num país televisivo como o Brasil, não precisa ser nenhum estrategista pra perceber isso. Ele tem uma conversa com o Mc Cabrito e toma um tremendo susto, ao saber como o custo é alto. Levaria pelo menos três anos trabalhando no camelódromo para juntar o dinheiro necessário.

Quase todo mundo no rap faz outra coisa pra sobreviver. O Luiz é motoboy, Raimundo corta cabelo, Paçoca trafica, Cezar é ator… O Cezar acha que Juca deveria produzir esse clipe de forma independente. Afinal, não foi sempre assim que o hip hop batalhou, no independente?

Planejou tudo com a Cia de teatro de Cezar, tim-tim por tim-tim. Rabicó pede a câmera de sua escola, Piolho transporta o equipamento, Mariana usa o telefone de seu trabalho: em dois fins de semana, tudo filmado. Juca ficou surpreso ao descobrir que a edição de um vídeo é tão parecida com a de um rap. Valeu a pena passar parte de sua vida em frente a seu computador, editando raps.

Vídeo pronto… Mas o que fazer com ele? O cara da MTV, que havia prometido exibi-lo, não está mais no programa. Todo o dinheiro se foi com transporte e alimentação. Não sobrou nem mesmo pra comprar a fita de finalização. O sonho do protagonismo parecia perdido, mas pra não deixar o vídeo parado, Juca começou a inscrevê-lo em festivais de cinema.

Uns achavam que festivais são para filmes, não para clipes. Outros, que isso é coisa de playboy, que não terá a menor chance. Foi difícil receber um comentário de apoio a suas ideias, mas pra surpresa de todos, até mesmo de Juca, o clipe começou a ser elogiado. Ele conheceu todo o país através dos festivais que participou e o que é melhor, sempre com sua mix-tape debaixo do braço, conseguia vender várias cópias e difundir ainda mais o seu trabalho de rap.

Os colegas do camelódromo gostaram muito de ver o amigo fazendo tanto sucesso. Só quem não gostou nadinha foi o Marcelinho, seu chefe. Se antes Juca perdia clientes escrevendo raps, agora ele quase não atendia mais na barraca. Enquanto os outros camelôs traziam ideias pra Juca fazer um documentário sobre o camelódromo, Marcelinho o ameaçava de demissão, caso as vendas não voltassem ao normal. Juca não pensava em outra coisa a não ser sair do camelódromo e viver só de cinema. Os outros camelôs fizeram uma vaquinha para o tal documentário, mas ainda não era suficiente. Juca convidou a galera da escola e pediu uns dias de folga ao Marcelinho, mas ele disse que Juca precisa decidir: , ou vende ou faz filmes.

O primeiro festival foi decepcionante. Ninguém aplaudiu ou votou em seu documentário. Talvez nem valesse a pena insistir mais. Se não fosse pelos amigos da escola que continuaram a inscrever o filme, Juca nem participaria mais de festivais de cinema. Quando recebeu uma menção honrosa, Juca foi aos céus. Todos os grupos de rap lhe homenagearam e mais uma vez se viu com aquela sensação de missão cumprida. Sua alegria só não se prolongou até o dia seguinte, devido aos comentários da crítica, que não poupou sua obra, mas uma coisa era: os camelôs ficaram emocionados em ver suas caras, belas caras, caras pretas na telona do cinema e perceberem que a partir daquele dia não seriam mais anônimos. Até mesmo Marcelinho parou de chatear Juca, toda vez que um cliente vinha pedir para ele autografar um DVD.

Sobre Cacau Amaral

Cineasta brasileiro. Direção em 5X Favela; 1 Ano e 1 Dia; Cineclube Mate com Angu; Sociedade Musical Lira de Ouro; Programa Espelho e Aglomerado. https://cacauamaral.com/
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