“O Gabinete do Dr Caligari” é um filme expressionista, realizado no início do século XX. O cenário expressionista e a maneira que o autor constrói os personagens expressam um olhar deformado da sociedade européia dos anos 1920. A história gira em torno de um show de sonambulismo e uma série de assassinatos. Algum tempo depois, o público percebe que toda história narrada não passa do delírio de um louco.
“Shrek” é um filme de animação, realizado no início do século XXI. O personagem principal é um ogro. Diferente dos contos de fadas tradicionais, onde sapos são transformados em príncipes, Shrek não busca uma transformação no sentido do padrão dominante. Ao contrário, ele reafirma sua condição de diferença e conquista seu espaço em um ambiente diverso. Mas o que os filmes “O Gabinete do Dr Caligari” e “Shrek” têm em comum? Qual a relação dessas obras com as mudanças de paradigma na cultura globalizada?
A expressão “Crise da Civilização”, que utilizamos neste ensaio, se refere, antes de mais nada, a falta – ou a inadequação – de um projeto ético que garanta a igualdade entre os seres humanos, no Brasil e no mundo. As oligarquias continuam patrocinando projetos políticos, mesmo diante da desaprovação social, e aumentando seu poder de barganha para manipular as ações dentro dos governos.
Estamos diante de uma mudança de paradigma cultural, que se inicia com diretrizes trazidas por estas oligarquias. O patrocínio de políticas públicas, a partir da iniciativa privada, nos trás vínculos que são difíceis de se desfazerem na busca da garantia dos ideais republicanos. O que nos parece valer, de fato, são propostas específicas de empresas, que elegem candidatos para posteriormente cobrar aumentos de lucros.
A globalização aproxima os países, tanto às vantagens como às desvantagens. A diferença proporcional entre esses países trás consigo o desequilíbrio destas relações, tendendo a agregar as vantagens apenas aos países mais fortes. Seria bastante ingenuidade de nossa parte, acreditar que uma relação comercial com potentes economias trariam benefícios para países em desenvolvimento.
Alguns acordos entre o México e Estados Unidos, por exemplo, em um primeiro momento aparentavam ser de igual interesse para ambas as partes, com boas possibilidades de integração econômica. Mas com o passar do tempo, diversas ações judiciais demonstraram que o México não estava satisfeito com os resultados dos acordos. O país se viu obrigado a indenizar empresas norte-americanas que se instalaram em seu território e não obtiveram os lucros almejados.
A interação entre os países possibilita acesso a várias culturas diferentes. Esse acesso é viabilizado a partir do estreitamento das fronteiras globais, e causa inteirações que transformam cada uma dessas culturas. Agregam valores que podem tanto lhes trazer avanços como também agravar ainda mais as diferenças. Mesmo os países mais ricos vivenciam experiências indesejáveis para sua população, em consequência do capitalismo selvagem, e buscam soluções tradicionais em lugares que ainda não foram impactados pela modernização.
Essas populações vivem em países ricos, mas nem sempre são capazes de se beneficiar com as vantagens conquistadas pelas oligarquias. Esses grupos são, nada menos, que elites hegemônicas que conduzem a sociedade desde que o capitalismo é capitalismo. A tecnologia aumenta os lucros das empresas e a vida passa a ter menos valor. O “ter” é mais importante que o “ser”.
A ética deixa de ser importante e cede espaço ao objetivo de lucro, nos moldes do capitalismo global. Fraudes e especulações vêm a reboque neste cenário. Instala-se um ambiente onde a honestidade é um valor menos nobre. O modelo ideal de indivíduo passa a ser um cidadão desonesto. Que lucra as custas dos menos favorecidos. Uma minoria se beneficia desse modelo, porém a grande maioria das pessoas se sente mais e mais usurpada. E questiona essa usurpação.
Fóruns internacionais são objetos de dicotomias. A Declaração dos Direitos Humanos, por exemplo, se constitui como uma das iniciativas interessadas em universalizar as culturas, em busca de um melhor entendimento no que diz respeito aos direitos humanos. Mas nos vemos diante de um impasse. Se por um lado existe o interesse em difundir a cultura desses direitos, por outro lado o relativismo ético põe em xeque as verdades difundidas no universalismo.
Culturas orientais questionam a “boa vontade” do ocidente em tentar homogeneizar a cultura em todo mundo. Propõem-se que por trás dessa ideia estaria um plano de imposição da cultura global, em detrimento das culturas locais. Que a cultura ocidental, onde prevalece o capitalismo, seria difundida em países que têm valores diferentes das propostas liberais do ocidente.
Os valores morais são colocados em xeque desde as duas grandes guerras, ocasião em que surge uma transformação a respeito de valores estanques. O expressionismo alemão, no início do século XX, é uma resposta ao positivismo, trazendo a visão interior do artista em oposição ao impressionismo, que remete a mera observação. Acontece uma relação do expressionismo e a artes plásticas, sobretudo a xilogravura.
Surge uma preocupação em relatar o cotidiano que revela o lado obscuro do ser. O pessimismo diante da modernidade, da industrialização e da alienação. Edvard Munch pode ser o maior expoente do expressionismo alemão. Sua obra “O Grito” mostra a tragicidade da vida humana. Após a primeira guerra, o expressionismo foi perseguido pelo regime alemão e criticado como “arte degenerada”. Somente depois da segunda guerra, volta com força total e impõem severas críticas ao fascismo.
“Guernica”, de Picasso, é um exemplo dessa crítica. A obra remete a deformação da realidade através do massacre da guerra. No cinema, “O Gabinete do Dr Caligari” trás a deformação da realidade ilustrada no cenário e na construção dos personagens. Mesmo atualmente percebemos essas mudanças de paradigma no cinema. Em “Shrek” o protagonista não se transforma em um príncipe idealizado pela cultura do outro, mas reafirma sua condição mais próxima à realidade.
Poderia ser interessante citar muitos outros exemplos onde a arte contribui com a cidadania, mas ficaremos restritos a esses aspectos para ilustrar o interesse da sociedade pela ética. Vivemos uma época de constantes mudanças. Distorções na vida cotidiana. Por exemplo, o lavrador que é preso por descascar uma árvore em busca do remédio para cura da doença de sua mulher.
As legislações foram criadas para proteger o ser humano, mas ao mesmo tempo podem puni-lo em nome da proteção das árvores. A arte acompanha o comportamento da sociedade através dos tempos. As mudanças de paradigma cultural em um mundo globalizado acontecem em nosso dia a dia e substituem a soberania de cada país por um governo mundial. A sociedade deve estar atenta a isso.
Paira no ar uma ideia de que o cidadão menos favorecido é ingênuo. Que ele não teria a capacidade de perceber a diferença social e a exploração. Mas o que acontece de fato é o aumento das cobranças. E essa questão pode ser percebida em todas as classes sociais. Uma multidão de insatisfeitos, pobres e ricos, percebe que a tão sonhada modernização através da tecnologia não aumenta a qualidade de vida, mas sim os lucros das empresas.
Modernizar por modernizar, nem sempre representa benefícios ao país. Grandes empresas podem aumentar seus lucros, mas a população de uma maneira geral tem poucas melhorias, sobretudo nas regiões mais periféricas. A modernização não depende apenas da tecnologia para acontecer, mas também de seu oposto. Assim como o hegemônico depende do subalterno. Como o culto depende do popular.
As expectativas de uma vida cada vez melhor, aos poucos se transformam em indignação. O discurso político do progresso fica cada vez mais ligado ao estado. Porém deixa de fazer sentido ao passo que está vinculado à engenharia social das oligarquias. O otimismo se transformou em uma grande luta pela sobrevivência das camadas menos abastadas no planeta.
Mesmo em países ricos, o cidadão busca alternativas na cultura oriental, como acupuntura, ioga, etc. São pessoas cansadas das malesas inerentes ao capitalismo. Essa mudança de paradigma deflagra uma nova possibilidade de arranjo social. As crises se transformam em oportunidades para a criação de um novo raciocínio. Não centrado em um grupo que detenha o maior poder aquisitivo, mas na preocupação com o bem estar de todos.
Assuntos, como a falta de recursos naturais enquanto impedimento para todos os países se industrializarem, poderiam fazer parte da pauta social com mais frequência. Poderia ser discutida, por exemplo, a possibilidade de esse impedimento não ter sua origem na falta de recursos, mas sim no interesse político. Sobretudo, no interesse econômico dos países mais ricos.